Há 30 anos, chegava ao mercado brasileiro o carro 100% movido a álcool pelo combustível extraído da cana. Hoje o mundo exalta a descoberta brasileira. Por Cynara MenezesEra o ano da anistia e o rádio dos carros tocava sem parar O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, na voz de Elis Regina. Aqueles tempos jurássicos em que se exilava, torturava e matava cidadãos por discordar do governo e se tocavam fitas cassete e LPs ficariam marcados por uma inovação tecnológica que só agora está sendo valorizada com total justiça. Há 30 anos, chegava ao mercado a primeira fornada de carros movidos a álcool, embriões dos automóveis bicombustíveis que revolucionariam a indústria automobilística mundial naquela década.
No princípio foi um Fiat 147. O carrinho de design avançado para a época e que virou objeto de culto tinha feito sucesso em sua supereconômica versão a gasolina. No comercial de lançamento, em 1976, um 147 branco humilhou a concorrência ao percorrer os 14 quilômetros da Ponte Rio-Niterói com apenas 3/4 de litro. Embora nunca tenha tido idêntica performance, o modelo a álcool causou sensação ao ser lançado, em julho de 1979, como prova de que o combustível alternativo promovido pelo governo poderia dar certo comercialmente.
E deu. Em 1986, no auge do programa, dois terços dos carros zero no País eram movidos a álcool. Só foram desacelerar e, por fim, desaparecer no início dos 90, por uma combinação de sabotagem dos usineiros, desinteresse das montadoras e má vontade governamental. Ainda hoje, os pioneiros do Proálcool (Programa Nacional do Álcool) e especialistas no assunto defendem que, mais bem regulado e com os avanços tecnológicos atuais, o carro inteiramente a álcool seria superior ao flex em termos econõmicos e ambientais.
Foi uma longa estrada até o primeiro carro a álcool chegar às concessionárias. As pesquisas oficiais utilizando o subproduto da cana-de-açúcar como combustível começaram em novembro de 1975 com a implantação do Proálcool, mas o pioneirismo brasileiro no setor remonta a 1914, no governo Venceslau Brás. Naquele ano, João Pandiá Calógeras, então ministro da Agricultura, Comércio e Indústria, estudou a substituição da gasolina pelo álcool, diante dos problemas de abastecimento causados pela Primeira Grande Guerra. Dez anos depois, um Ford participaria de uma corrida no Circuito da Gávea, no Rio, tornando-se, provavelmente, o primeiro veículo movido a álcool da história.
A preocupação governamental com o combustível sempre foi o motor das pesquisas. Em 1922, o presidente Epitácio Pessoa criticava a excessiva importação de gasolina e, a partir de 1930, no governo Getúlio Vargas, o País passou a ter uma política de adição do álcool ao combustível, na proporção de 5%, que chegaria a 20%, em 1952, em alguns estados produtores. Vargas também criaria um importante mecanismo de controle governamental, o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), em 1933, extinto pelo presidente Fernando Collor em 1990.
Meio esquecido na era pós-Vargas, o tema do álcool voltou à baila com a crise internacional do petróleo, em 1973. “Compusemos grupos de trabalho e vimos que era preciso substituir o petróleo, um bem não renovável que demora centenas de milhões de anos para se formar, por uma energia renovável”, conta o físico José Walter Bautista Vidal, secretário de Tecnologia Industrial do governo Ernesto Geisel e um dos idealizadores do Proálcool. “Fizemos vários testes e verificamos que o álcool era mais potente que a gasolina e não era poluidor. Além disso, temos terra em abundância, muita água e o sol, que favorece a fotossíntese da planta.”
É pela fotossíntese que as plantas transformam a energia eletromagnética do sol em energias líquidas: os álcoois e óleos vegetais. Para Bautista Vidal, o fato de o sol iluminar principalmente o continente tropical deixa o Brasil em situação privilegiada na fabricação de combustíveis alternativos. “Somos o paraíso da energia. Os países dominantes estão em regiões temperadas e frias, são fracos em energia. Por isso tiveram de adotar o petróleo como combustível. Nós não precisamos nos preocupar com a escassez de petróleo, porque nosso problema energético está resolvido”, aposta.
Vidal convidaria para chefiar a equipe de pesquisadores do programa, sediada no Centro Técnico Aerospacial (CTA) da Aeronáutica, em São José dos Campos, o engenheiro Urbano Ernesto Stumpf (1916-1998), considerado o pai do motor a álcool no Brasil. Cerca de 160 pessoas, de idades e perfis variados, atuaram nas pesquisas, inclusive engenheiros mecânicos das fábricas de automóveis, que foram convocados pelo governo para o projeto com cobertura de salários.
Com Stumpf à frente, um dos primeiros experimentos do grupo foi misturar o álcool anidro à gasolina e verificar a proporção ideal para fazer o carro rodar sem que fosse preciso mexer no motor: 10%, que o governo militar logo adotou nos postos de abastecimento. Ao mesmo tempo, o CTA desenvolvia um motor inteiramente a álcool. Em princípio, entre as fabricantes, só a Chrysler se interessou pelo programa, graças a um engenheiro do grupo, Clovis Michelan, que tinha sido aluno de Stumpf.
O primeiro veículo a rodar com álcool, um Dodge 1800 verde, era o “Dodginho” particular de Michelan. Os problemas rapidamente apareceram. Por exemplo, o carro engasgava, falhava. A famosa falha na partida a frio, principalmente de manhã cedo, que mais tarde faria o slogan criado para o programa, “Carro a álcool: um dia você vai ter um”, virar “Carro a álcool: um dia você vai empurrar um”, na boca do povo. O problema só iria acabar definitivamente em 1981, com o Corcel II, da Ford, considerado o automóvel que revolucionou os veículos a álcool ao automatizar o sistema de partida com sensores inteligentes.
Outras inovações da Ford foram em relação à corrosão que o álcool era acusado de promover no motor: passou-se a usar níquel para proteger os carburadores e bombas de combustível, o tanque foi revestido e colocaram-se filtros mais resistentes. “Antes, as borrachas e o tanque, feito de aço, sem tratamento, corroíam. O pior eram os carburadores, feitos de Zamak, uma liga de zinco e estanho que não possuía a menor resistência ao álcool”, diz o engenheiro mecânico Sergio Figueiredo, autor de uma tese de mestrado sobre o Proálcool, apresentada na Universidade de Brasília em 2006.
“Nenhum carro a álcool antes do Corcel II, em 1981, era bom. O álcool formava uns floquinhos brancos que entupiam o carburador e faziam o carro parar o tempo todo. Daí a fama de que precisava ser empurrado”, ri Figueiredo. “Mas esses problemas eram sabidos, os pesquisadores do CTA e do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) os tornavam públicos. As montadoras não resolviam porque não tinham interesse no carro a álcool, em aperfeiçoar uma linha de produção no Brasil com componentes diferentes do resto do mundo.”
Integrante da equipe de Stumpf no CTA, o engenheiro mecânico Paulo Ewald conta que os problemas eram, muitas vezes, prosaicos. Após testar o primeiro “Dodginho”, uma caravana de três veículos percorreu 8,5 mil quilômetros Brasil afora, para demonstrar que o negócio funcionava mesmo – outro Dodge, desta vez zerinho, cedido pela Chrysler (ainda hoje em exposição no Museu Aeroespacial Brasileiro), um Fusca 1300 comprado e um Gurgel Xavante emprestado. Aliás, não se sabe o porquê, mas, em princípio um entusiasta do álcool, o engenheiro João Amaral Gurgel, morto em janeiro, se tornaria mais tarde um inimigo ferrenho do combustível e não quis utilizá-lo no BR-800, seu carro nacional.
Quando, na etapa seguinte do projeto, veículos da frota das empresas estatais foram convertidos ao álcool, volta e meia surgia um caso pitoresco envolvendo principalmente os Fusca utilizados pela Telesp. “Às vezes é esquecido o papel que os Fusquinha laranja e azuis da Telesp desempenharam na pesquisa do motor a álcool. Como eram 400 dos 731 carros convertidos, além de fazer uma propaganda danada, serviram para testar cada defeito do veículo em escala”, lembra Ewald.
Um problema comum nos Fusca 1300 utilizados pela companhia telefônica era queimar a bobina. Os pesquisadores do CTA foram investigar e descobriram que o carrinho rodava com duas pessoas: o técnico e o motorista. Enquanto o técnico ia efetuar o conserto, o condutor permanecia no veículo, ouvindo rádio, com o motor funcionando. Por isso a bobina queimava. A solução foi desvincular o rádio da ignição.
Outra história curiosa diz respeito ao carburador, que vivia sujo. Alguém descobriu que o ácido acético era capaz de efetuar a limpeza, mas, ao colocar o carburador de molho na solução, só saiu o esqueleto. O ácido corroeu tudo. Os engenheiros foram testando a diluição do ácido em água até chegar à solução ideal: 5%. Um belo dia, um mecânico da Telesp trouxe a novidade: “Gente, ácido acético a 5% é vinagre”. Daí por diante, passou-se a limpar o carburador com vinagre.
Com o tempo, a tecnologia foi melhorando em favor do álcool e tornando possível o caminho para se chegar ao flex. Os tanques passaram a ser de plástico resistente ao álcool. Tubulações, idem, assim como os coletores. E os filtros são muito mais eficientes do que na década de 80, quando o combustível estava a toda. Para se ter uma ideia, os primeiros filtros usados pela GM nos motores a álcool chegaram a dissolver.
“Foram várias as evoluções tecnológicas. Atualmente são aplicados materiais que garantem a durabilidade do motor por toda a vida”, informa o engenheiro Carlos Henrique Ferreira, assessor técnico da pioneira Fiat. Infelizmente, o carro a álcool não sobreviveu para aproveitar as mudanças. Em 1989, houve uma grande crise no setor, quando faltou álcool nas bombas a ponto de ser substituído pelo similar metanol. A diferença é que o etanol possui duas moléculas de carbono em sua fórmula, e o metanol, apenas uma, o que o torna perigoso ao contato humano. “O etanol é praticamente igual à cachaça, é incolor, insípido. O metanol, não, é venenoso”, explica o professor Bautista Vidal.
A troca causou polêmica e proporcionou uma confusão tragicômica. Ministro da Indústria e Comércio de José Sarney, o ex-deputado federal Roberto Cardoso Alves (1927-1996), criador da célebre e triste frase “é dando que se recebe”, vivia às voltas, em entrevistas, com questionamentos sobre o metanol. Repórteres queriam saber o que aconteceria se alguém colocasse o combustível na boca, e Robertão saiu-se com essa: “Ora, não se pode confundir metanol com Cepacol!”
Piadas à parte, logo depois, ao assumir a Presidência, Collor, que já havia chamado os carros brasileiros de “carroças”, assinaria o atestado de óbito do automóvel a álcool ao extinguir o IAA e pôr fim aos subsídios. Tinha razão em cortar os fabulosos subsídios que enriqueciam os usineiros e mascaravam o preço do álcool: sem eles, a gasolina custaria cinco vezes menos que o combustível de cana. Mas deixou à deriva 4 milhões de proprietários dos carros a álcool, que pararam de ser produzidos em 1990. Com eles, também acabam as pesquisas feitas aqui em termos de motor exclusivo.
“É uma pena, porque o álcool é o único caso de inovação tecnológica desenvolvido e difundido inteiramente no Brasil”, diz Figueiredo. “Voamos num avião a álcool em 1985 e paramos de pesquisar. Também tínhamos desenvolvido protótipos de motores pesados, como caminhões e ônibus, como alternativa ao diesel. Talvez hoje estivéssemos ensinando para o mundo”, lamenta o engenheiro Paulo Ewald. Foi-se o carro a álcool, veio o flex, propagandeado pelo presidente Lula na visita que fez a Barack Obama na Casa Branca, em março – Obama já possui um.
No Brasil, o primeiro carro bicombustível foi lançado em 2003, o Gol Power 1.6, da Volkswagen. Hoje, os carros movidos simultaneamente a álcool e a gasolina representam 10% da frota de automóveis do País. Representaram quase 90% dos carros novos vendidos no mês passado. O flex teve o mérito inegável de tirar o álcool, agora com o nome oficial de “etanol”, do limbo das boas ideias governamentais fracassadas e da memória dos saudosistas para torná-lo de novo o combustível do futuro.
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